sexta-feira, 21 de outubro de 2011

Alagoas X cana-de-açúcar

A história do sétimo maior produtor do setor sucroalcooleiro que
sobrevive da plantação da cana-de-açúcar desde a época da colonização

Por Beatriz Nunes e Ingryd Brito

Segundo menor estado do Nordeste, atualmente com mais de três milhões de habitantes, Alagoas é um estado cuja economia gira em torno da cultura da cana-de-açúcar, primeiro produto explorado nas terras recém-descobertas pelos portugueses em pleno século XVI. É também este mercado que dita o ritmo da vida do povo alagoano, desde o engenho do passado até os dias atuais.
            A produção sucroalcooleira em Alagoas teve início a partir da visão do alemão Cristovão Lins ao chegar ao Estado, à época pertencente a Pernambuco e comandado pelo donatário Duarte Coelho. Os registros históricos retratam que Cristovão fundou os três primeiros engenhos alagoanos, que receberam o nome de Bueno Aires, Escurial e Maranhão, na região de Porto Calvo, hoje cidade da região Norte.


O açúcar e a economia alagoana

Ingryd Brito
“A economia de Alagoas começou com a base do açúcar e continua, apesar de toda essa diversificação”. Esta é a afirmação do economista e jornalista Jair Barbosa. De acordo com ele, apesar do estado apresentar atividades em outros setores, como o cloroquímico, com a Braskem, a Petrobras, com o gás, o petróleo e o fumo em Arapiraca a base econômica de Alagoas continua sendo o açúcar.
            Na década de 80, Alagoas foi considerado o segundo maior produtor de açúcar do país, perdendo apenas para São Paulo. Desde então, vem perdendo espaço para outros estados como Paraná e Minas Gerais. Até mesmo empresas alagoanas já possuem unidades nestes estados. Para Barbosa, a perda reflete na economia e no desenvolvimento do estado. “Nós perdemos espaços e hoje estamos em quinto lugar na produção do açúcar, mas no Nordeste ainda estamos em primeiro, estamos a frente de Pernambuco. Esta é uma atividade que gera muito emprego, não tanto quanto já se gerou. Para se ter uma ideia, há 20 anos atrás, a cada safra de usina [que acontece a cada seis meses], a atividade empregava mais de 300 mil pessoas. Hoje este número não chega nem a 100 mil. Por que isto, se Alagoas continua sendo o carro-chefe da economia? A resposta é simples: é a questão da mecanização”, explica o economista.
            A produção sucroalcooleira tem suprido uma demanda interna grande. Os números de exportação alagoana diminuíram. Com o passar dos anos, os compradores foram ficando mais exigentes no quesito qualidade. Alagoas enfrenta este problema desde o início da sua produção de açúcar. Barbosa explica que a falta de ética nas negociações do açúcar brasileiro abriu espaço para que produtores de outros países ganhassem espaço na venda de seus produtos, o que gerou a primeira crise do açúcar, ainda no século XVIII. 
            “O que Alagoas tem hoje é uma atividade mecanizada, altamente tecnológica, porque o comprador estrangeiro que compra o açúcar brasileiro exige uma boa qualidade, o que era diferente da época dos engenhos, quando não havia tecnologia. Houve uma crise no açúcar no século XVIII que atingiu em cheio Alagoas, Os senhores de engenho colocavam pedra dentro das barricas de açúcar e isso foi descoberto na Europa. Eles deixaram de comprar o açúcar brasileiro e começaram a compra o que era produzido das Antilhas, no caribe. Essa foi a primeira crise que nós passamos, porque os europeus já queriam qualidade nós tentávamos enganar o comprador, que pagava o preço do peso enquanto só tinha a metade”, relata Barbosa.
            Não que o nosso produto não possuísse qualidade, pelo contrário. O açúcar alagoano que é exportado é o demerara que, ao chegar ao destino, passa por um processo de clareamento, cristalização, refino. Quem faz o açúcar mascavo e rapadura, faz com a cana sem nenhum produto químico, um adubo orgânico, nada químico.

O êxodo rural

            A queda na produção e na exportação mudou o quadro alagoano. Para economizar e modernizar sua produção, a fim de recuperar a qualidade exigida pelo mercado europeu, os usineiros passaram a investir na modernização de seus engenhos e usinas. Esta é a fase que dá início a um problema social: o êxodo rural. Trabalhadores sem emprego buscam nas grandes cidades uma maneira de trabalhar para sobreviver.
            “Um usineiro compra uma maquina que substitui 100 cortadores de cana, então para eles o custo da aquisição da maquina é alto, mas compensa com o passar do tempo porque ele não vai ter a questão trabalhista. Isto sem falar na moradia das pessoas. Houve o êxodo rural por conta disto. O emprego caiu em função da mecanização, tanto no campo como na própria cidade”, relata o economista.
            Ainda segundo ele, o trabalhador rural sente dificuldade de adaptação e obtenção de emprego pela falta de profissionalização. “Com a diversificação na economia de Alagoas, outros setores foram absorvendo essas pessoas, apesar deles não saberem muitas coisa. Porque para o trabalhador rural que corta cana, o conhecido ‘boia fria’, quando ele chega numa capital e até mesmo numa cidade do interior, eles não têm no que trabalhar. Há dificuldade, mas as próprias empresas já estão conseguindo treinar estas pessoas para poder absorver esta mão de obra, que é barata. E ainda tem a parte deles, trabalhista, com carteira assinada porque já no corte de cana eles não têm isso, É um trabalho sazonal, eles trabalham seis meses e param por mais seis”, explica.
            As mudanças na comercialização refletem em vários setores. As usinas em Alagoas, que eram praticamente cidades, com suas vilas operárias, atualmente possuem casa apenas pra aqueles que trabalham no escritório, ou para algum trabalhador rural responsável pelo cultivo da terra no período de entressafra, quando ele fica cuidando da terra.

- JAIR BARBOSA -

Sem legislação trabalhista, sem direitos legais, os trabalhadores rurais não possuíam garantias de um futuro que permitisse largar o plantio da cana a partir de determinada idade ou tempo de serviço. “Eles [os trabalhadores rurais] começaram a se aposentar agora, há 50 anos, na década de 60, com a criação do Funrural, Contribuição Social Rural destinada a custear a seguridade geral, resultado bruto da comercialização rural. Ninguém se aposentava. Quando os engenhos passaram a ser usinas, começou a legislação trabalhista. Antes disso, as usinas pagavam salários, mas eles não tinham direitos, benefícios. O que eles tinham era o que o patrão disponibilizava: alguns davam casa, escola, saúde. Mas isso foi acabando aos poucos”, revela Barbosa.
            Com o fim dos poucos benefícios oferecidos e a chegada das máquinas às usinas, o êxodo cresce. “A mecanização foi jogando para a cidade os trabalhadores rurais, os cortadores de cana. As usinas não têm mais casa para eles e eles trabalham somente seis meses no ano. Então eles moram na cidade e durante o período da safra as usinas mandam buscá-los. Alguns assinam a carteira por aquele período, mas a imensa maioria, principalmente a fazenda de cana, que fornece a cana, não assina a carteira. O trabalhador assalariado com carteira é aquele mais fixo, que fica lá na usina o tempo todo, mas é muito pouco”, afirma Jair Barbosa.
            Para Barbosa, a superlotação das grandes cidades, o aumento do lixo nas ruas e o crescimento do número de desempregados é mais uma consequência da migração do trabalhador sem qualificação do campo para a cidade. “É por isso que surgem as favelas, principalmente na capital. Maceió inchou, Maceió tem hoje quase um milhão de habitantes, justamente em função do êxodo rural. Da saída do homem do campo para a capital, que chega aqui, não encontra trabalho e vai morar na favela. Depois o governo constrói a casa e ele continua sem trabalho, então ele vive de biscate. Hoje existem os programas sociais como bolsa família, então eles vivem de bolsa família, onde a mulher recebe a renda e o homem vai viver de biscate”, explica.
            O economista explica, ainda, que as famílias que optam em não migrar para a cidade grande encontram na agricultura uma forma de sobrevivência, uma prática que tem adquirido mais adeptos. “A agricultura familiar é outro setor que tem crescido. As pessoas têm um pedaço de terra e elas plantam para vender. Os sem-terra são exemplos nesta área. Plantam a agricultura de subsistência, que é para comer e vender. É o inhame, o feijão, as frutas e hortaliças que eles trazem para realizar feiras”, diz.
            Apesar de Alagoas estar entre os cinco maiores produtores de açúcar do Brasil, o estado continua com baixos índices de desenvolvimento. O economista Jair Barbosa alerta que estes números negativos são reflexos de uma distribuição desproporcional de rendas. “Houve alguns avanços, mas Alagoas continua com os piores índices sociais do Brasil. Temos o maior índice de analfabetismo, de mortalidade infantil, agora tem a  questão da violência Isso porque Alagoas é um estado rico economicamente e pobre socialmente, o mais pobre do pais. É rico mas com a riqueza em mãos de 5% da população, dos usineiros, donos das grandes industrias. É um retrato do Brasil e o Brasil é a sétima economia do mundo, mas em desenvolvimento está no septuagésimo lugar”, afirma.
            Questionado sobre as soluções existentes para mudar este quadro do estado, Barbosa acredita que alguns projetos federais e estaduais podem ajudar a transformar a história de Alagoas. “Alagoas tem condições de mudar porque nós temos alguns projetos, do próprio Governo Federal, como o próprio canal do sertão, que está andando. É uma questão política, mas que está se consumindo. Ele vai levar água para todo o sertão, isso pode transformar Alagoas em um oásis, como foi Petrolina e Juazeiro na Bahia, com a irrigação”, explica.
            O tamanho do estado, na opinião do economista é fator importante para a mudança. “Alagoas tem toda chance, porque é um estado pequeno, tem 27 mil km quadrados, com uma população de três milhões de habitantes, com um litoral imenso, de 280 mil km, hoje quase todo ligado no asfalto e com um turismo de fonte de geração de emprego e renda”, finaliza.

A história

REPRODUÇÃO
Terras férteis, banhadas por rios e lagoas, índios para usar como mão de obra barata. Este foi o cenário encontrado pelos colonizadores portugueses ao desembarcarem em terras alagoanas. O nome “Alagoas” surge exatamente neste período, pela abundância de águas ao redor do território encontrado.
            De acordo com o Barbosa, a região onde hoje existe a cidade de Porto Calvo foi o primeiro ponto a ser ocupado com a finalidade da plantação da cana-de-açúcar, portanto, o início da história alagoana. “Para se falar da história de Alagoas tem que se começar falando da história do açúcar. Os primeiros engenhos de Alagoas foram fundados na segunda metade do século XVI, através de um alemão, Cristóvão Lins. Ele fundou os três primeiros engenhos em Porto Calvo, que ele também fundou como povoado e daí começaram a surgir o cultivo da cana, o desmatamento em Alagoas”, explica.
            Barbosa lembra, ainda, que o início da produção não foi tão fácil quanto parecia ser. Segundo ele, a opção de usar os índios que habitam a área então ocupada pelos portugueses para trabalhar com o novo “empreendimento” não obteve êxito. “Os problemas enfrentados no começo da plantação da cana era muitos porque índios não se adaptavam a esse cultivo. Eles eram acostumados a pescar, caçar, plantar macaxeira, e não eram acostumados na agricultura, não sabiam o q era cana-de-açúcar, porque isso não existia. Isso surgiu com os colonizadores. A partir daí vieram os novos colonizadores e formou-se o que é hoje Alagoas porque até então, tudo pertenciam a Pernambuco. Éramos capitania de Pernambuco”, afirma.
            As mudanças necessárias para o sucesso do setor sucroalcooleiro foram adotadas pelos portugueses que chegaram depois de Cristóvão Lins. “Depois do Cristóvão Lins veio o Antônio de Barros Pimentel, que também era português. Eles ficaram na região das lagoas, em Marechal Deodoro e Pilar. Depois, outros migraram para São Miguel dos Campos e Penedo. Tudo era cana, até Penedo”, diz o economista.
            Com o crescimento no novo produto, os índios foram substituídos por escravos, resultado da falta de adaptação com o serviço. Com tantas mudanças e investimentos, o setor sucroalcooleiro cresceu, colocando Alagoas como precursora do mercado das usinas no Brasil. “O s primeiros trabalhadores de engenhos eram escravos e depois da abolição, em 1888, passaram a morar nos engenhos e depois passaram a morar em usinas. Em 1890 começaram a surgir usinas de Alagoas. A primeira usina brasileira foi em Atalaia e as usinas substituíram os engenhos, davam moradia, não tinham mais senzala. A partir de 1890, a nova mudança: eles começaram a pagar salário aos trabalhadores”, explica Barbosa.

O Engenho Monte Verde


Beatriz Nunes
A cana-de-açúcar, sua produção e estrutura foram responsáveis por grande parte da construção de Alagoas. O surgimento de algumas cidades aconteceu exatamente como uma evolução da produção da cana no local. Os terrenos eram ocupados, viraram plantações e daí surgiram as vilas que, em alguns casos, tornaram-se município. Em consequência, seus primeiros políticos e governantes eram fazendeiros, plantadores da cana.
            Na cidade de Chã Preta, a 108 km da capital Maceió, o histórico da formação da cidade seguiu esta linha. A área pertencia ao município de Viçosa, famosa por possuir em suas terras muitos engenhos. O primeiro prefeito de Chã Preta assumiu no ano de 1962, Benedito Soares de Vasconcelos entrou na política quando ainda era proprietário de um engenho famoso na região: o Monte Verde, que ficava dentro da sua fazenda, também do mesmo nome.
            “Meu marido foi o primeiro prefeito da cidade, assumiu em março de 1962, quando Chã Preta deixou de pertencer a Viçosa e ele foi prefeito três vezes, um prefeito muito homenageado”, afirma Maria da Salete Pimentel de Vasconcelos, 77 anos, proprietária da fazenda onde funcionava o Engenho Monte Verde. A cidade chegou a possuir mais de 15 engenhos em atividade.
            Atualmente, Benedito Soares vive em estado vegetativo, dentro do quarto, vítima de uma doença degenerativa. Sua esposa, Maria da Salete, administra a fazenda que um dia sustentou a família através da produção sucroalcooleira.
            O Engenho Monte Verde funcionou mais de 70 anos, quando ainda era propriedade de Manuel Firmino [pai de Benedito, esposo de Maria da Salete].  No começo, produzia apenas rapadura e era caracterizado como Manjar, porque usava apenas os bois, somente depois compraram as rodas utilizadas na produção. O engenho parou de funcionar em 1999 e no auge da produção chegou a produzir 10 cargas de rapadura por dia, com cada carga equivalente a 400 rapaduras.

Ingryd Brito
“Uma carga era vendida a um valor que hoje equivale a R$ 400. Os matutos compravam para revender nas áreas do sertão e do agreste. A cana começava a ser plantada no mês de agosto e era colhida após oito meses”, explica Maria da  Salete.
            No Engenho Monte Verde, a família conseguia sobreviver da produção de rapadura. Para uma produção era necessário ter uma equipe de pelo menos 30 funcionários. Entre as atividades exercidas, existiam os cortadores de cana, mestre de rapadura, fornalheiro, encaixador, mestre para fazer mel. Além dos bagaceiros, que eram encarregados de tirar o bagaço da cana, cambiteiro, batedor de forma, cevador - que colocava a cana na moenda e do moedeiro.
            A moagem começava entre os meses de agosto e setembro e durava até março, parando no inverno. Em tempos de muita procura o trabalho no Engenho Monte Verde iniciava a sua jornada uma hora da manhã e, em alguns dias, chegava a terminar a tarde. O engenho possuía apenas um salão com uma roda e uma fornalha.
Com a jornada de trabalho puxada, os trabalhadores moravam dentro das terras onde funcionavam os engenhos. Uma pequena estrutura era proporcionada para as famílias dos senhores de engenhos e seus trabalhadores, como explica a proprietária: “Os trabalhadores que viviam das atividades de engenho moravam aqui mesmo. Tínhamos até uma escola funcionando ao lado da nossa casa. Quando eu casei dei aula nessa escola e gostava muito do que fazia. A escola deixou de funcionar a quatro anos, porque o número de alunos era pequeno”, disse.
          A diminuição da demanda pelo produto, no século passado, fez com que os proprietários das fazendas dessem início a outros tipos de produção, a fim de completar a renda que era perdida. “A baixa procura pelo produto fez com que os engenhos começassem a passar por uma crise. Então, quando a gente decidiu parar com a produção de rapadura, investimos na produção de leite. Nós já trabalhávamos com isso, mas passamos a investir mais. Compramos máquinas, como resfriador, e hoje nossa produção é comercializada na região e vivemos basicamente disto”, explica Maria da Salete.
            Para alguns, a exemplo de Salete, a época de produção dos engenhos e da fazenda movimentada deixou lembranças inesquecíveis. “A época de engenho era muito animada e se eu pudesse voltava no tempo, tenho muita saudade daquela época”, finaliza. 

Beatriz Nunes
 Pedro Joaquim Vital, conhecido como Pedro Lipu, tem 82 anos e é pernambucano. Ele veio morar em Alagoas aos 10 anos de idade quando sua mãe resolveu se mudar para cá. Ele é ex-funcionário do Engenho Monte Verde e trabalhou 50 anos nos engenhos de Alagoas e Pernambuco. Para ele, as lembranças da época são outras. “Eu comecei no engenho tirando bagaço, comecei desde pequeno. Nunca possui pai e eu ajudei no sustento da casa. Cansei de dizer e repito: os patrão (sic) tinham duas caras. Se a rapadura tivesse boa ele estava com a cara boa e se tivesse ruim ele ficava de cara feia, a gente nunca era bom pra eles”, diz.
            Além do Monte Verde, Pedro Vital trabalhou em engenhos como Antônio Teixeira, Serraria, Tobias e Pedra de Fogo. Ele relata que o trabalho era pesado, uma jornada cansativa, quase escrava. “Eu comecei a fazer de tudo nos engenhos depois eu passei a rodar a tacha pra fazer rapadura. O trabalho dependia do patrão, às vezes começava quatro da manhã e ia até 11 da noite. Às vezes a gente amanhecia o dia, dependia da quantidade de matuto [comprador que revendia nas cidades] que tivesse pra pegar rapadura. Muitos vinham do sertão e precisavam viajar no mesmo dia”, recorda.
            Vital explica que o fim da era dos engenhos em Alagoas não foi fácil para quem trabalhava na fazenda. Há 15 anos ele deixou o engenho para trabalhar na roça. “Quando eu larguei essa vida fui trabalhar em roça, na minha e na dos outros. Não tenho saudade dos engenhos, eu sofria muitas noites de sono e a minha melhor época é essa”, afirma e completa: “Dos donos de engenhos só dois estão vivos, a família deles é tudo rica, não tem nem um pobre não. Agora a gente vive de plantar na roça pra poder comer”, finaliza.

Beatriz Nunes
Pedro Necreto dos Santos, 69 anos, também é ex- funcionário do Engenho Monte Verde. Ele trabalhou 20 anos em engenhos, oito destes em Pernambuco e o restante no Monte Verde. “Eu cortava a cana e cambitava [guiava os animais]. Comecei nessa profissão quando ainda era solteiro, casei e sustentei minha família trabalhando no engenho. Me lembro como hoje, ganhava três cruzeiros”, explica.
Para ele, o trabalho com cana-de-açúcar era uma falta de
opção a quem não era de família rica. “Naquela época a condição pra viver era aquela. Todo mundo era pobre e não tinha do que viver. Meus pais trabalhavam na roça e a gente morava na terra dos donos dos engenhos onde a gente trabalhava. Comecei a trabalhar ainda criança na plantação de mandioca. Eu com nove anos já 'tava' na casa de farinha, ajudando meu pai, mas eu já achava a plantação de cana bonita”, recorda.
            “Quando eu estava cambitando, começava a trabalhar quatro horas da manhã, mas quando estava dentro do engenho era uma hora da madrugada que começava.
Dependendo da cana que tivesse no engenho começava de uma e ia até às nove horas”, diz.
            O fim da era dos engenhos não proporcionava muitas opções aos trabalhadores que deixavam as plantações de cana. Assim como Vital, Pedro dos Santos investiu na produção da agricultura de subsistência. “Quando o engenho fechou eu comecei a trabalhar numa roça, porque só era isso que eu sabia fazer. Trabalhar com cabo de inchada no meio da plantação”, explica Santos.

Ingryd Brito
            Ainda de acordo com ele, as mudanças foram boas para estes ex-trabalhadores. “Hoje eu planto minha roça numa terrinha minha, ganhei da prefeitura e vivo bem melhor porque naquela época era muito difícil. O trabalho era pesado, eu não podia botar uma rocinha pra mim e hoje eu posso fazer isso. A verdade é que hoje em dia não tem um pedaço de terra quem não quer. Só não trabalha quem não quer”, afirma, sorridente.

Os engenhos e sua mecanização

Ingryd Brito
A 104 km de Maceió, na cidade de Junqueiro, a produção da cana-de-açúcar, da cachaça de engenho e demais produtos provenientes da cana continua em pleno funcionamento. A diferença é o estilo de produção. A cidade, que possui mais de 23 mil habitantes, segundo dados do Instituto Brasileiro de Geografia e Estatístca (IBGE), é sede da fábrica da empresa “Brejo dos Bois”, atualmente a maior produtora de gêneros alimentícios vindos da cana em  Alagoas.
            A empresa está no mercado há cinco anos e tem obtido sucesso neste processo de produção industrializada. De acordo com Luciano Amorim, gerente e produtor da fábrica, o número de funcionários é pequeno, devido à mecanização da empresa. “Na época da entressafra nosso número de funcionários aumenta e chega a 12, mas, normalmente, nossa empresa é formada por apenas quatro pessoas que ficam responsáveis pela produção e embalagem. Começamos a empresa com uma estrutura de agroindústria”, explica.

Beatriz Nunes
Apesar do baixo número de funcionários, a produção da empresa no ano passado ultrapassou os 22 mil litros de cachaça orgânica. Além da cachaça, que pode ser consumida em quatro tipos: tradicional, envelhecida, sabores com mel de engenho e edição especial, a empresa ainda produz o mel de engenho, a rapadura e o açúcar mascavo, produtos provenientes da cana-de-açúcar, só com processos que são diferentes.
            A rapadura e o açúcar mascavo são de produção limitada. De acordo com Amorim, não dá pra ter esses produtos o ano inteiro. “Existe uma procura pequena por estes produtos. É uma minoria, classe b, classe a, então o produto é pouco consumido. E o preço é mais alto, porque é orgânico. Todos os nossos produtos são orgânicos”, afirma.
            A opção por produção orgânica na propriedade de 90 hectares já chegou a render a empresa o título de segunda melhor cachaça orgânica do Brasil. “Preparamos a terra durante três anos para poder conseguir a produção orgânica [livre de agrotóxicos]. Mas, fomos recompensados. Existem oito alambiques no país em qualidade orgânica com o selo do IBD [Instituto Biodinâmico], entre 3000 alambiques em todo país, e a nossa empresa, mesmo com tão poucos funcionários, é a segunda melhor em qualidade orgânica”, explica Amorim.
            O gosto pela cana-de-açúcar é herança de família. Segundo Amorim, seus bisavós eram senhores de engenho, em Pernambuco. “Nossos bisavós possuíam engenho. Crescemos com essas histórias. Meu irmão é apreciador de cachaça e a vontade de produzir um produto com qualidade  fez com quem investíssemos na fábrica”, diz.

Da cana à cachaça

O processo do plantio a colheita para produção dos derivados da cana-de-açúcar é demorado. O produto orgânico necessita de cuidados especiais. Na produção de Junqueiro, por exemplo, a plantação ocorre a cada dois anos, com a terra sendo acompanhada por agrônomos e biólogos para que tudo seja reaproveitado.
        Após a colheita e a moagem, é preciso escolher qual produto vai ser confeccionado, já que a cachaça precisa de um sistema e o mel, de outro. Do mel de engenho surgem as variações para o açúcar e para a rapadura. Após o surgimento do caldo de cana, um caminho longo é percorrido.

- LUCIANO AMORIM -
            Cada processo será entendido de forma clara e simples no infográfico que está na próxima página. O caldo pronto segue para a moenda e passa para o decantador, um filtro que côa os bagaços que saem da moenda. Isto acontece até chegar na etapa onde fica só o liquido. A partir daí, o caldo desce para os taxos. “É um processo cuidadoso, pois precisamos verificar o brix da cana [teor de sacarose] Quando ele chega a 23 mostra que a cana está madura”, explica Amorim.

Ingryd Brito
“Para a produção da cachaça, o brix precisa ser cinco, então, a depender do produto, diminuímos o teor de sacarose de 23 para cinco. Para fazer o mel, a rapadura e o açúcar tem que ter concentração de Brix porque o caldo tem que cozinhar para poder evaporar e concentrar o brix, de forma que migre de 23 para 100 brix, ou seja, ficando ainda mais doce”, diz o gerente.
            Brix alterado, a produção prossegue. “É fácil de entender, põe a cana na moenda, da moenda vai para o decantador, do decantador ele vai pra duas dornas, uma dorna é a da cachaça”, declara Amorim. Até chegar à dorna a matéria prima é igual, na dorna do mel vai acontecer a concentração de açúcar. No processo pela produção da cachaça, o contrário, a diluição. O taxo é o local onde, concentrando o brix, é produzido o mel, que desce para as máquinas diferentes: uma pra fazer açúcar e a outra pra fazer a rapadura.
            De acordo com Amorim, estas etapas de fermentação dão lentidão à confecção dos produtos. “Quando ele [o caldo] sai da dorna de diluição, vai pra seis dornas de fermentação. Nas dornas de fermentação ela vai passar 24 horas para zerar o brix. Só quando zera é que vai para o alambique. Um processo lento”, afirma.
            Após 24 horas de fermentação, a matéria deixa de ser caldo e passa a se chamar mosto ou vinho. O próximo passo é cozinhar para formar três tipos de cachaça: de cabeça, de coração e a água fraca. Todas elas obtidas após temperaturas que variam entre 120° e 45°. A cachaça de cabeça e a de água fraca possuem muitas toxinas e, por isso, não são utilizadas para a produção da cachaça que hoje é comercializada em Alagoas, Sergipe e Pernambuco.
            Preocupados com a sustentabilidade, os produtores utilizam a cachaça de cabeça e de água fraca para a produção do álcool utilizado na higienização da fábrica. “Reaproveitamos todo nosso material. Fazemos o álcool 70 para uso interno por uma questão de sustentabilidade. No plantio orgânico, o adubo é o estrumo do gado, então, o bagaço da cana, as frutas, os galhos de árvores são usados na compostagem”, ressalta o gerente.
            A empresa possui seis alambiques, cada um capaz de produzir 800 litros de cachaça, onde apenas 130 litros resultam na cachaça comercializada. “É uma produção cara. Toda a propriedade tem cerca viva, o que impede que produtos químicos sejam levados para a fábrica. Mesmo com poucos funcionários, sensibilizamos os pequenos produtores vizinhos sobre a utilização de bombas, por exemplo. Não queremos nenhum tipo de contaminação pelo ar”, diz.
            Questionado sobre incentivo do governo estadual para a implantação da fábrica, Amorim é firme e objetivo. “Nosso projeto foi caro, em tempo e dinheiro. Trouxemos especialistas para preparar a terra e nestes cinco anos de empresa nunca obtivemos incentivo do governo. Mas mesmo assim somos o primeiro colocado em vendas no Estado e estamos conseguindo entrar nos estados vizinhos. Com dificuldade, mas, sozinhos”, finaliza.


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